terça-feira, 27 de abril de 2010

A merendeira

Eu sempre comi feito um dragão/ caminhoneiro e graças a essa minha habilidade estomacal e degustativa tenho um texto novo para o blog.

Quando estava no ensino fundamental não saia da cantina ou da copa, onde serviam a merenda, por nada. Geralmente eu era o primeiro a entrar e o último a sair, sempre antes e depois do sinal. Por essa minha infância bem regrada tenho essa pança cultivada com carinho.

Havia 3 portas nessa copa/ refeitório. Uma de entrada, outra de saída e uma que ficava atrás do balcão das merendeiras que dava para uma área restrita a funcionários.

Certa vez, em um dia de fome rotineira, ao tomar minha sexta caneca de leite com toddy acompanhado do décimo pão com manteiga, estava a apreciar a movimentação no refeitório quando aconteceu a coisa mais engraçada que já vi na vida. Um garoto arremessou sua caneca no balde que ficava ao lado da porta de saída. Era um balde pra isso mesmo, para deixar as canecas usadas. Porém a caneca deste jovem estava cheia ainda, metade caiu dentro do balde e metade voou no cabelo de uma menina. Hilário. Vergonhoso pra menina e pro jovem desatento, mas nenhum dos dois percebeu, o que tornou a cena ainda mais engraçada. Só não foi tão engraçado como o leite que escorria pelo meu nariz no meio do refeitório. Rindo sozinho. Alto. Quase cai no chão de dar risada, mas eu estava na quarta-série e não tinha moral alguma construída ainda. Como tinha visto o que eu vi, fui zombado pela escola inteira como o garoto que gorfou pelo nariz. Não achei engraçado.

Uma vez, nesse mesmo refeitório da escola, fiquei olhando a reação da galera ao ver o que tinha no cardápio do dia:

- Temos purê e carne moída. – disse a merendeira
- Affff, isso, de novo? Como alguém consegue comer essa ‘nhaca’?
- É o que temos pra hoje. – complementou a merendeira.

No momento, como sempre, achei muito engraçado e continuei olhando a reação do pessoal:
- O que tem hoje, tia?
- Temos purê e carne moída.
- Nossa. Pode colocar pra mim.
- Sim, é o que temos pra hoje.

Fiquei olhando o pessoal pedir, comer, outros saiam da fila, outros faziam cara de nojo, mas era o que tinha pro dia. Fui embora.

Hoje, após ler um texto do Charlie Chaplin “O DIA DE HOJE”, lembrei desse fato da merendeira.
“...Posso reclamar porque está chovendo
ou agradecer às águas por lavarem a poluição.
Posso ficar triste por não ter dinheiro
ou me sentir encorajado para administrar minhas finanças, evitando o desperdício.
Posso reclamar sobre minha saúde
ou dar graças por estar vivo...”
O dia de hoje – Charlie Chaplin

O que você tem pra hoje, você pode mudar? É ruim ou bom, vai ignorar ou resolver, vai fugir ou enfrentar, vai querer o purê ou vai procurar outra comida, vai resolver o problema ou arranjar uma desculpa, vai sair pela tangente ou fazer cara de nojo?

Afinal, todo dia, só temos o purê e carne moída. Que tal?

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Antes da luz acender

Pelas madrugadas anteriores, o frio intenso que cortava os lábios era o mesmo que cortava os corações e, de alguns, até confortava. Estranho conflito, em minha opinião.
Enquanto essas noites cortantes corriam pelo lado de fora das nossas vidas, nos cortávamos entre declarações e frases sinceras, machucantes e entregáveis. De certo as ideologias evidenciavam as brutais diferenças dos dois, mas um calor emanava em sincronia, amaciando todos os sentimentos de angústia, insegurança e desconfiança. Do que se trata, afinal? Acaso?

Nunca me considerei uma pessoa controladora, nem possessiva. Isso até ontem.
Foram muitas sinceridades trocadas, assuntos que acredito que poderiam ser facilmente evitados, melhorias sugeridas e raiva. Ódio, descontentamento, decepção, asco, rebeldia Eu quis estar no controle.
O sorriso e o olhar profundo mexiam com todos os meus sentidos, ela conseguia me controlar sem dizer uma palavra, sem fazer qualquer gesto, tudo com o “simples” emanar de calor.
Sem medir as conseqüências, o passado foi sendo jogado sem direcionamento um ao outro como se fosse possível controlar os sentimentos. Do que se trata, afinal?

É diferente de tudo o que eu já experimentei, singular. É certo e intenso. Crescente e dependente, da causa e do efeito. Um contrato sem cláusulas definidas com objetivos subentendidos. Sem certo e errado.
As luzes apagadas acendem a chama de que tudo vai dar certo, o clima estava criado e as nossas músicas tocavam sem parar. Todas elas. Eu não me lembro de nenhuma.
Que o calor não esfrie, que as músicas toquem, nos toque, a quem e quando for, que seus cabelos possam continuar dançando no meu peito, que sua voz seja música em todas as claves, todos os tons e que sua sinceridade seja estímulo aos nossos desejos, que tua pele continue neste tom e sabor meu.
Os cantos que poderiam ter sido nossos viraram retratos em memória, não me abraçam a tristeza e a solidão. O copo está cheio.

O escuro é a única testemunha da verdade vivenciada. Antes da luz acender, podíamos nos ver. Internamente. Interna a mente. A mente não mente. Pelo menos com o breu aceso.
Do que se trata, afinal?