segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O Inventor

Cabelos pretos e bagunçados, típico de maluco. Andava de um jeito acelerado. Atrasado, derrubava os papeis pelo salão principal do prédio que morava.
Enquanto pegava um ponhado de papel que caia, derrubava as chaves de casa e do carro, perdia mais tempo se apressando do que se arrumando. E não ligava pra nada disso.
Por diversas vezes deu de cara com o vidro que separava o hall do prédio da escada da portaria. Mas nem se dava conta, achava tudo normal.
"Bom dia, tudo bem?!" tímido, representava isso só com um balançar da cabeça, pro porteiro e pra moça do Yakult. Abria o porta malas do carro e arremessava toda papelada e sua mochila lá. Do jeito que caia, ficava.

Ele sabia que era motivo de chacota da molecada do prédio e percebia que alguns adultos evitavam entrar no mesmo elevador que ele, mas não se abalava a princípio, mudava o foco do pensamento e já lembrava de alguma canção. Só queria chegar ao seu destino e fazer suas coisas. O resto era só o resto mesmo.

No toca fitas do seu carro tocava artistas que só ele conhecia. Canções de blues, rock anos 80 e, em dias mais cinzas, desligava o som. Na ida ou na volta também curtia as rádios AM que ficam passando notícias o dia todo.
Ele odiava semáforos vermelhos, calculava sua velocidade para pegar todos verdes até a avenida principal. Aí de lá fugia de seu controle. E no controle ele queria estar sempre. Gostava de prever, calcular hipoteses e arriscar. Não era um cara de muitos amigos, mas era admirado por quem "o conhecia". Uma pena ele não saber disso.

Ele morava sozinho, não se sabe como chegou ao condomínio, raras vezes pedia uma pizza e recebia uma visita. Os volumes de seu apartamento eram moderados e suas contas estavam sempre em dia.
Não gostava de baladas, nem de televisão. Não bebia e não fumava.

Aos domingos, colocava sua bermuda azul escuro de 'tactel', seu tênis branco e uma camiseta qualquer para caminhar no parque. Saia pontualmente às 7h para caminhar. Dados exatos 30 minutos de caminhada, ele se sentava em um banco onde o sol podia alcançá-lo e ficava olhando.

Seus óculos embaçam por causa do suor, arrisca ficar sem eles por diversas vezes, mas só enxerga cores em movimento. Desiste, recoloca os óculos, apoia os cotovelos nos joelhos, cruza as mãos cutucando uma folha e olha, só olha. Olha tudo a sua volta.

A garota de patins, o gordinho suado, o bombado na barra, a molecada com uma bola, um casal com o cachorro, o chafariz, a menina e seu livro na grama, o garoto com seu violão, o gurizinho e sua pipa,  a gordinha e o sorvete, o ambulante e sua pochete, a gostosa de sainha, a bicicleta e a corrente, a senhora e sua garrafinha de água, o grupo de dança, o segurança e seu rádio, a faxineira e sua vassoura, a nuvem e o céu, o vento e as árvores, ele, o banco, tudo isso e seus pensamentos desalinhados.

Levanta, decide caminhar mais um pouco, dessa vez no contra-fluxo dos que estão correndo.
Leva algumas esbarradas, mas segue firme. Repara alguns olhares de reprovação por estar na 'contramão', mas não para. O ritmo dos seus passos começam a ganhar velocidade e segue. Olha para o chão e olha pra frente respirando em bit acelerado. Conta quantos passos está dando e quantas pessoas passam por ele. Metódico, inventando novas manias. Quinze passos e 8 pessoas. Três mulheres e cinco homens. Trinta passos, vinte pessoas. Segue aumentando o ritmo e levanta o pescoço para que o vento refresque seu rosto. Um, dois. Um, dois. Um, dois. 
Adora a sensação.

- "Cuidaadoo!" - Alguém grita.

Ele tropeça em alguma coisa e cai. Por lá fica alguns instantes.
Alguns riram impulsivamente.
Outros se desesperaram.
Alguns fingiram que não viram.
Outros ficaram com pena.
Alguns acharam 'bem feito!'.
Outros queriam ajudar.
Alguns sabiam o que fazer.
Outros não arriscaram estender o braço.
A maioria se aproximou pra ver o que estava acontecendo. E só ficaram olhando. E olhando.

Ele abriu os olhos calmamente, não dirigiu uma palavra a ninguém. Levantou pacientemente, recolocou seus óculos levemente retorcidos, olhou a expressão das pessoas que estavam ao seu redor, com os braços abriu espaço para passar no meio daquela muvuca, ouviu um pedido de desculpas sendo gritado ao fundo, um burburinho qualquer e seguiu curtindo o vento em seu rosto. Ganhando velocidade no contra-fluxo. Um, dois. Um, dois. Joelhos e cotovelos levemente ralados ardiam e se refrescavam na brisa que recebia.
Quanto mais rápido, mais refrescante, menos dor.
Quanto mais lento, menos refrescante, mais dor.
Pensou.